terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES

Dr. Leovigildo Calhardo foi importante advogado especializado em demandas de terras. Quem precisasse legalizar posses duvidosas ou tratar de qualquer litígio na área rural, sabia a quem recorrer, pois sua fama corria o Estado e ultimamente alcançava até as regiões do norte do país.

A expansão das fazendas de gado e de plantações de soja estava criando problemas fundiários nas regiões do norte do Mato Grosso, norte de Goiás e oeste da Bahia, onde as terras que pouco valiam em tempos passados agora eram objeto da cobiça de grandes pecuaristas e de empresas agrárias.

E no meio das inúmeras demandas, sempre se encontrava o Dr. Calhardo. Por força das demandas, viajava constantemente, passando maior parte de seu tempo nas comarcas do interior brabo do país.

— Modere, Dr. Calhardo. Sua saúde não lhe permite tanta atividade. — Recomendava seu médico, quando eles se encontravam em São Paulo, onde morava o advogado.

— Que nada, Dr. Álvaro, tenho muita disposição e enquanto puder, vou trabalhar com entusiasmo. — Respondia ele.

— Sim, mas um ataque de seu mal, em um lugar sem recursos, pode levá-lo à morte, em poucos minutos. — advertia o médico.

Do que falava o médico? Da doença congênita de Leovigildo: epilepsia. O controle do mal era mantido com eficiência pelos medicamentos. Mas nada impedia de um ataque em condições adversas, ou seja, em alguma localidade desprovida de qualquer tipo de assistência imediata, conforme o mal requeria.

Parece que o médico estava adivinhando. Pois numa tarde quente, enquanto verificava registros e arquivos num cartório no longínquo distrito de Pequizeiro, no oeste da Bahia, o doutor Leovigildo sofreu um ataque.

O dono do cartório, que nunca tinha visto um caso igual, ajudado por dois clientes, levaram o advogado para o pequeno posto médico. Ali, atendido apenas por um enfermeiro também pouco habilitado (ou melhor, sem nenhuma habilitação), não recebeu socorro necessário. Quando chegou o médico responsável pelo posto, o velho e caquético doutor Epaminondas, o advogado já estava hirto.

— Nada a fazer — disse logo o velho médico. — Já era. — E assinou o atestado de óbito, dando como causa mortis ataque cardíaco fulminante.

Um telefonema demorado proporcionou a ambulância, que veio da sede do município e levou o corpo até o pequeno campo de aviação onde um acanhado avião estava disponível para emergências.

Mas o único piloto, Joel, não quis assumir a missão de levar o corpo para São Paulo.

— Tem uma zona de grande tempestade pelo sul e meu teco-teco não agüenta.

Os telefonemas se cruzaram, e a oferta de uma boa recompensa fez com que o piloto mudasse de idéia e encetasse a viagem.

— Tá bom, vamos lá. Vamos por o morto deitado no chão, entre os bancos. — E assim, precariamente e indignamente foi colocado o corpo dentro do minúsculo avião..

Entretanto, o ataque epiléptico não havia sido mortal, como o velho médico do posto atestara. Como se sabe, um ataque dessa doença pode levar o portador a ficar com a aparência de um morto, enganando aos leigos e até médicos incompetentes.

Após duas horas de vôo, a consciência retornou ao Dr. Leovigildo. Abriu os olhos, sentiu o corpo doendo pela incômoda posição em que estava muito tempo. Sentiu um zumbido no ouvido, que logo identificou com um barulho exterior.

Ainda que se sentisse fraco, procurou levantar-se, o que conseguiu com grande esforço e segurando em qualquer apoio dentro do cubículo exíguo em que se encontrava. Numa dessas tentativas, encontrou o ombro do piloto, que apertou na procura de se segurar.



O piloto estava ocupado com os controles da pequena aeronave, que já se adentrava pela região de turbulência. Raios ciscavam entre as nuvens à sua frente, e podia-se ouvir a trovoada, acima do ronco do motor.

Ao sentir a pressão sobre seu ombro, virou-se e deu de cara com o rosto do homem que transportava como morto.

O susto foi terrível e o medo do inexplicável tomou conta do piloto que, por momentos, descuidou dos controles do avião. Momentos fatais, suficientes para que a pequena aeronave iniciasse uma queda e fosse apanhada por um poderoso vento lateral.

Não houve como reassumir o controle do avião, que foi dominado pelo vento. A descida foi rápida e o solo se aproximou em minutos.

Aterrorizado com a aparição e incapaz de dominar o veículo, o piloto só teve um reflexo: apelar para a sua fé.

— Mãe de Deus, me ajuda. Nossa Senhora dos aflitos, me socorre.

Apanhado por um vento lateral, o avião foi elevado empurrado para cima e para um lado, batendo com o lado direito da asa num paredão. A queda foi amenizada pelas copas das grandes árvores da mata abaixo da serra.

Quando deu de si, Joel estava fora do avião, dependurado num galho de árvore, a alguns metros do chão. A chuva caia e empapava seu corpo.

Olhou para baixo e, entre a macega do chão, viu o corpo do homem que transportava como morto.

Desceu como pode da árvore e aproximou-se do homem, estendido no chão. A face emaciada estava molhada pela chuva e pelo sangue que escorria da testa. Os olhos arregalados, o branco destacando-se nas duas cavidades, cabelos pelo rosto, a boca escancarada, era a própria visão de um morto vivo. Mas Joel não se intimidou. Agachou-se, passou o braço esquerdo por sobre os ombros e escutou um som cavo vindo da garganta.

Ainda está vivo, pensou. E dirigindo-se para o homem ferido:

—O senhor pode falar? Está me ouvindo?

O homem piscou uma vez. Tentou levantar o braço direito, mas este descambou.

O sangue brotava da ferida na cabeça e de um corte feio no pescoço.

Joel sentiu quando as forças diminuíram e a chama da vida se apagou naquele corpo inerte. Tentou ouvir o coração, mas nem era preciso. Sabia que o outro morrera definitivamente.

Se não estava morto antes, agora, com certeza, não está mais vivo, pensou.

A chuva estiou, embora o tempo estivesse carregado. Saindo da proteção das árvores, o piloto viu, logo abaixo, os telhados de diversas construções de uma fazenda.

Não estava ferido com gravidade. Apenas algumas escoriações e um mau jeito na mão direita. Desceu correndo pelos campos na direção das casas.

O acidente havia sido testemunhado por muitas pessoas dali e dois cavaleiros já estavam subindo, em disparada, em direção ao local da queda do avião. Joel encontrou com os dois, que desceram das montarias e ajudaram-no.

Às primeiras perguntas, Joel foi respondendo como podia. E mais tarde, quando foi levado à cidade, prestou depoimento na delegacia de polícia e foi entrevistado por jornalistas e o pessoal da televisão.

A todos deu as informações sobre o acidente devido ao mau tempo, sem nunca revelar a ninguém que seu passageiro fora um homem que tinha morrido duas vezes.



ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 6 de novembro de 2011

Conto # 694 da Série Milistórias

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