Nelson assomou à sacada do seu quarto, no segundo andar da elegante morada em estilo colonial. Estava cansado, o dia no escritório fora incrível, cheio de clientes reclamantes, e a audiência com o juiz o deixara arrasado. Ainda por cima, o trânsito no princípio da noite estava infernal.
Bem que mereço uma noite de descanso. Mas as possibilidades de ter algum repouso naquela noite eram remotas. O movimento do bar defronte era intenso, principalmente dos assíduos fregueses do churrasquinho do Luizinho, cuja churrasqueira ficava estrategicamente à porta do bar. A algazarra que chegava da rua, embaixo, era grande. Por entre os carros estacionados, o pessoal se espalhava pela rua, e ocupava até mesmo à calçada de sua casa. Era preciso pedir licença à multidão para entrar ou sair de sua própria residência.
A noite estava fria, o que não inibia em nada a venda de churrasquinhos. O pessoal se animava ainda mais com a cerveja que corria livre. Nelson sabia que aquela zorra iria até à meia-noite ou mais. E nessa noite algo mais estava acontecendo nas proximidades: um catador de papel, embriagado, sentado sobre seu carrinho, dirigia palavrões às pessoas que saboreavam os churrasquinhos, em brados que incomodavam toda a vizinhança.
Não demorou muito, chegaram dois policiais montados em imponentes corcéis, a fim de corrigir o comportamento do exaltado cidadão. Desceram de seus cavalos e se dirigiram ao homem, que não conseguia sequer se levantar para conversar com as autoridades. O bêbado, ao ser interpelado, começou a invectivar contra os policiais. Um dos agentes da lei subjugou o embriagado que, resistindo, fez desabar a alta carga de seu carrinho, assustando um dos cavalos.
O outro soldado não teve tempo para segurar o cavalo pelas rédeas. Relinchando, o animal levantou-se sobre as patas dianteiras, recuou e abateu-se sobre a traseira de um dos carros estacionados. O estrondo foi feio. O veículo vermelho balançou-se ao mesmo tempo em que se ouvia o barulho de vidros estilhaçados.
Da sacada, Nelson testemunhou toda a ação. Enquanto um dos soldados mantinha o bêbado manietado pelas algemas, deitado sobre a calçada, o outro ajudava a se levantar o cavalo que, tendo escorregado, caíra sobre o asfalto. Os comedores de churrasquinho correram, atropelando a churrasqueira do Luizinho e entrando pelo bar. Parece cena de cinema, nunca vi coisa igual, pensou o advogado, interessando-se pela ação inusitada de homens e animais. Enquanto descia as escadas, rumo à porta de entrada, os guardas conseguiram controlar o princípio de pânico da multidão e dos animais. Quando chegou ao local, os guardas se comunicavam, via rádio, com a Central de Polícia.
— Positivo e atuante. Requisitamos viatura, a fim de conduzir elemento bêbado, perturbando sossego público. Desligando.
Em seguida, um dos guardas se dirige ao bar, à procura do proprietário do carro envolvido no incidente. Sai acompanhado de um casal jovem.
— É, esse carro é meu, sim. — Diz a jovem Vivi, atônita, sem acreditar no que estava acontecendo. — O senhor tá me dizendo que o cavalo caiu em cima dele? Como é que pode?
O guarda lhe relata o ocorrido. E conclui:
— Já chamamos a viatura e o Tenente Valdomiro, para fazer a ocorrência do evento.
Nelson se apresenta como testemunha do incidente.
— Estava na sacada, vi tudo. Os cavalos se assustaram com a revirada das caixas de papelão do carrinho.
O pessoal do churrasquinho volta à rua, e alguns curiosos se aproximam do bêbado (que continua gritando contra todo mundo), dos cavalos (aparentemente ilesos) e dos guardas (desorientados).
Vivi estava dentro do bar, com seu namorado, e nada presenciara do acontecido. Aceitava com relutância a narrativa dos soldados, corroborada por Nelson, testemunha ocular. Estava preocupada.
— Não quero acionar a seguradora, perco a franquia. Vou ter um prejuízo de mais de trezentos reais.
— A senhora pode acionar o Estado. — Sugere um dos guardas.
— Será inútil. Jamais receberei qualquer indenização do Estado. Sei como são essas coisas.
A primeira viatura chega após meia hora de espera. O bêbado é metido dentro do carro, sob protestos, numa gritaria insana. Uma vez lá dentro, parece acalmar-se. Em outra viatura, maior, chegou um oficial que se apresentou a Vivi.
— Sou o Tenente Valdomiro. Vamos fazer a ocorrência e a senhora terá seus direitos assegurados.
— Quero saber quem vai pagar pelo conserto do meu carro.
— Naturalmente, o Estado pagará. A senhora manda consertar, e com a ocorrência em mãos, poderá abrir um processo de indenização. — A voz do tenente é calma mas não tranqüiliza a moça.
— Acionar o Estado? O senhor tá brincando? Sabe quando é que receberei a indenização? Nunca!
— Infelizmente, é assim o procedimento legal.
— Com o perdão da palavra, seu Tenente, mas acho isso uma tremenda irresponsabilidade. É melhor ser abalroada por outro veículo do que ser pisoteada pelos seus cavalos. Onde já se viu? — Ela começava a perder a calma. — Meu carro estacionado é objeto de uma disparatada ação policial, vou ter de consertá-lo e ainda por cima...acionar o Estado! É o fim da picada!
A essa altura, sete policiais estavam ali, envolvidos no incidente: os dois cavalarianos, mais dois que chegaram na viatura para levar o elemento perturbador da ordem, o tenente Valdomiro e mais dois que o acompanhavam. O rádio de um dos policiais não cessava de fazer chamados, orientando-os para outras missões.
— Negativo e inoperante. Ainda estamos envolvidos na emergência P-301. — Respondia, a voz inalterada, automática como se fosse um robô.
Enquanto Vivi e o oficial não chegam a um acordo, Nelson, que conhece Vivi e seu namorado Mariano, comenta com este, em voz baixa:
— Veja você: sete policiais envolvidos com a prisão de um bêbado, enquanto os criminosos, bandidos, traficantes, ladrões, estão por aí, mandando brasa, aproveitando a situação. Isto é o que chamo de ineficiência.
Por fim, o tenente acalma Vivi:
— Visite-me amanhã pelas dez horas da manhã, na sede da polícia, vamos ver o que pode ser feito para tranqüilizá-la. Mas nada posso lhe prometer.
Enquanto o tenente se dirige para seu carro, os cavalarianos se afastam, montados garbosamente e em passo lento. A porta da viatura que mantinha o bêbado preso se abre e ele sai, liberado, aparentemente curado de sua bebedeira. São quase onze horas e por mais de uma hora ele permanecera no pequeno cubículo do veículo, tempo em que durara o affair da polícia montada.
Saindo da viatura policial, o pivô de toda a ação classificada como “emergência P-301”, entra pelos varais de seu carrinho. Puxando-o, segue pela rua, cantando, engolido pela escuridão da noite fria e finalmente calma.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 20.02.2002
Conto # 164 da Série Milistórias
domingo, 9 de outubro de 2011
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