domingo, 9 de outubro de 2011

A RESSURREIÇÃO DE NICO FANLUCI

Os primeiros meses de 2011 foram marcados por um verão de catástrofes no sul do país. Chuvas torrenciais e constantes ocasionaram toda uma série de desastres. Rodovias com trechos impedidos de traficar devido à erosão e ao arrasto de trechos de asfalto, na BR de Curitiba a Florianópolis. Pontes que rolaram em diversos municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Enchentes, desabamentos de edifícios, casas arrastadas ou destruídas pela força dos ventos, aluviões, grandes deslizes de terra, enfim, um verdadeiro fim do mundo para os habitantes das regiões assoladas pelas chuvas, enchentes e deslizamentos.

A cidade de Hortênsias fica no vale do rio Guajuí. Quer dizer, o rio corre lá no fundo do vale, ladeado pelas encostas dos morros Verde e Castanhal. A cidade cresceu subindo as encostas dos morros. Ruas íngremes, terrenos de relevo acentuado. As culturas, na maioria pomares e parreirais, se fixam como podem, as raízes vão se agarrando, ajudadas por curvas de nível, que mantêm a umidade do solo e evitam erosões.

Os habitantes, na quase totalidade descendentes de italianos, que foram os colonizadores daquela região, são pessoas de boa índole e, de um certo modo, até acostumadas às intempéries do clima, que nos últimos anos têm sido de uma freqüência assustadora.

Por duas vezes naquele verão o rio subiu pelas margens, elevando-se de oito a dez metros acima do nível normal. As casas ribeirinhas que não foram arrastadas (de madeira, não resistem à força da correnteza inflacionada) ficaram com água até o telhado e os proprietários perderam tudo o que possuíam.

Vidas se foram. Principalmente de velhos e crianças.

A tragédia abateu-se sobre família de Nicola Fanluci. O velho patriarca, com mais de noventa anos, foi uma das vítimas mais sentidas. Apesar da correnteza das águas do rio que subiu com velocidade incrível e com uma força impossível de se imaginar, ele teve agilidade para subir até o topo da casa, ajudado pelo filho Salvatore e pelo neto Adriano.

Aliás, o esforço maior mesmo foi feito por Adriano, já que Salvatore ajudava a esposa Dalila a manter-se precariamente no telhado molhado e escorregadio. Mas o coração do velho italiano não agüentou e num esgar subido e ligeiro, ele morreu preso às mãos de Adriano.

— Pai! — Gritou o jovem de dezoito anos. O Nono! O Nono! Ele não respira mais!

Todos ficaram petrificados, olhando a figura do velho, hirta, agarrado ao neto, que escorregava lentamente, afundando. Salvatore acordou do terror súbito a tempo de ajudar o filho a segurar o corpo de Nico. .

Ficaram estáticos por alguns momentos, sem saber o que fazer. Foi quando chegou uma lancha vermelha, com os bombeiros e voluntários, e resgataram a família com o morto.

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O velório do velho Fanluci foi abreviado e o enterro feito com dificuldade, sob a chuva que caia sem parar. Embora a família fosse simples, Salvatore fez questão de, mesmo na tragédia, proporcionar ao pai um caixão compatível com a sua dignidade: uma urna de madeira de lei, envernizada e com alças de metal. Fora o último disponível na funerária.

Dentro da tragédia, a morte do idoso italiano foi uma grande perda também para a colônia, pois era um líder e benquisto na cidade. Por isso, o grande número de pessoas que subiram levando o caixão, ladeira acima, até o cemitério, situado na encosta do morro Verde.

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Dez dias de estio e o rio baixou. O sol iluminou com uma luz cruel os locais arrasados, mas também ajudou, com seu calor e claridade, a levantar os ânimos dos habitantes, empenhados na reconstrução e na reparação do que fosse possível.

E novamente o céu se fechou, para mais uma semana de chuvas que desciam como um novo dilúvio. O desespero dos moradores de Hortências agora era de outra natureza: as enxurradas que desciam das encostas dos dois morros. Violentas, arrasavam plantações e animais. Criações que pastavam eram atropeladas pelas águas, e até mesmo algumas casas sofreram abalos.

O pior, entretanto, estava por vir: o cemitério, situado no meio da encosta, foi sendo erodido pelas águas que desciam do morro, e túmulos foram abalados. Numa noite de fortíssimo temporal, ninguém viu a impressionante enxurrada que rolou por sobre o cemitério.

No dia seguinte, ao se levantar, Adriano foi até o quintal. Ficou horrorizado com o que viu. Correu até o quarto do pai, gritando:

— Pai! Pai! Vem vê! Corre aqui, vem cá vê!

Enquanto calçava as botas, antes mesmo de trocar o pijama, o Salvatore pai gritou com o rapaz:

— Calma, filho. Se acalme. O que foi que aconteceu?

— O Nono voltou! Tá la no quintal!

Correram os dois para a porta dos fundos. A mãe também foi. Então todos viram porque Adriano estava alucinado.

O caixão estava embicado na varanda do quintal, sem tampa, qual uma canoa, na qual repousava tranqüilo como qualquer defunto o velho e digno Nicola Fanluci.

Antonio Gobbo
Belo Horizonte, 29 de março de 2011 - Conto # 660 da Série Milistórias

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