Os livros de vovó Beatriz exerciam grande fascinação em Dorinha, que passava momentos de enlevo apenas olhando as lombadas e lendo os títulos. Eram guardados num grande armário com portas de vidros, trancadas à chave, que a idosa senhora mantinha em lugar ignorado pelas crianças. Ou assim pensava ela.
Dorinha estava com dez anos, freqüentava a escola na cidade, bem como seus irmãos Otávio e Carlos. Todos já sabiam ler, escrever e eram aplicados aos estudos. Mas Dorinha era mais atenta na classe e gostava de ler livros além daqueles usados na escola. Ela vivia namorando os livros da avó.
Quase todas as noites, a bondosa avozinha contava histórias para os três netos. A reunião dela com os netos na sala de visitas da grande casa da Fazenda Palmital era como um ritual: ela sentava-se na confortável poltrona, as mãos ocupadas com as agulhas de crochê — ou, ás vezes, com um volume novo, recebido na véspera, e que exibia aos netos, numa amostragem do tesouro que o livro continha.
— Vejam, crianças, este livro novo. “Mais Histórias das Mil e Uma Noites”.
E mostrava a capa, dava uma folheada e deixava que os netos o manuseassem por alguns momentos.
Retomando o livro, abriu numa página qualquer.
— Vamos ver se é bom mesmo. Vejamos esta história aqui, da pagina 189. “A Primeira Rupia”.
— Lê prá gente, vó Bia. — pediram os três, em coro.
— Claro, claro, foi prá isso que mandei vir o livro.
E começou a ler.
. . .
Numa terra muito distante, além do Paquistão e do Industão, vivia, há muitos anos, um honrado mercador, conhecido como Muscandir Fujab. Era muito rico, viúvo e tinha um filho de nome Alijabin.
Muscandir Fujab era um homem trabalhador, negociante respeitado, muito estimado por todos na cidade onde tinha seus negócios. Já o filho Alijabin, jovem de 25 anos, era o oposto ao pai: preguiçoso, não queria seguir a profissão do honrado senhor Muscandir. Irresponsável, tinha um comportamento condenável por todos os que o conheciam. Vivia provocando desordens na cidade, o que aborrecia muito o pai, que tentava, por todos os meios, trazer o filho para a vida séria de negociante, tal como ele. Entretanto, para desgosto do honorável pai o filho nunca aceitava seus conselhos e o convite para ser sócio nos negócios, na grande tenda de mercadorias que eram trazidas do distante Oriente.
Um dia, ao cair da tarde, Alijabin ia saindo quando o pai o chamou para uma conversa séria.
— Estou muito preocupado com você, meu filho. Vejo que, além de não querer trabalhar comigo, não faz nada além de divertir-se com os falsos amigos. Esbanja dinheiro que não ganha trabalhando. Por isso, decidi deserdá-lo. A minha fortuna será, por certo dilapidada em festas e orgias, se ficar em suas mãos, depois de minha morte.
— Isto não é justo! — gritou Alijabin. — Sou seu filho único e tenho direito à herança.
— Não, não tem direito algum à herança, se não fizer por merecê-la. — Respondeu o pai. — Contudo, vou lhe dar uma última oportunidade para continuar sendo meu herdeiro. Você terá de obter, com seu trabalho, com seu próprio esforço, no prazo de três dias, uma rúpia. Sei que não é muito dinheiro, é quase nada, mas lembre-se: você terá de conseguí-la com seu trabalho. E tem o prazo de três dias para ganhar esta rupia.
. . .
— Uma rúpia? — interrompeu Carlinhos. — Que é isso?
— É o dinheiro corrente em muitos países do oriente, como a Índia e seus vizinhos. Corresponde, em certas regiões, ao pagamento de um dia de trabalho. — esclareceu Vovó Bia.
. . .
Alijabin saiu de casa pensando na proposta do pai. Em vez de procurar logo um trabalho, onde ganharia a rupia, ficou pensando.
— Se não conseguir uma rupia, serei deserdado e depois da morte de meu pai, ficarei na miséria. E meu pai honra sempre a própria palavra.
Procurou os amigos, falso amigos, por sinal, que só o acolhiam devido às festas e às orgias que Alijabin lhes proporcionava.
— Não se preocupe. — disse um deles. — Nós lhe emprestamos uma rupia, que você entrega ao seu pai, e ele não o deserdará.
Ao entardecer daquele mesmo dia, Alijabin chegou-se diante do pai e entregou-lhe a rupia que lhe haviam emprestado.
— Aí está uma rupia, que ganhei trabalhando. — Disse, mentindo ao pai.
Depois de segurar a moeda por alguns momentos, o pai disse:
— Esta moeda não foi ganha com seu trabalho.
Assim dizendo, o pai jogou a rúpia ao fogo.
Completamente arrasado pelo que o pai dissera, o que era a verdade, não teve como responder, e retirou-se para seus aposentos.
No dia seguinte, contou aos amigos o que havia acontecido.
— Você deve fingir que trabalha. — Aconselharam os amigos.
Ao final do dia, Alijabin apresentou-se ao pai com roupas sujas, e amassadas, fingindo ter trabalhado o dia todo. Entregou-lhe uma rupia que havia sido pelos amigos, como no dia anterior.
— Aqui está, meu pai, o produto de um dia de meu trabalho. — Disse, mentindo novamente.
Pela segunda vez, o pai, desta vez irado, atirou a moeda ao fogo, dizendo:
— Também esta moeda não foi ganha com o fruto de seu trabalho!
A evidência de sua mentira deixou Alijabin atônito. Humilhado novamente saiu sem dizer nada.
Na manhã do terceiro dia, consciente de que havia errado por duas vezes, e humilhado demais, e vendo que seguindo os conselhos dos amigos acabaria sendo deserdado, resolveu procurar um trabalho a fim de ganhar pelo menos uma rupia.
Logo encontrou um oleiro, para quem amassou barro e colheu caniços. Ao meio dia trabalhou no mercado vendendo ervas aromáticas. E a entardecer, remou varias horas, auxiliando no transporte de pessoas que queriam atravessar o rio.
Ao final do dia, antes de o sol se por, apresentou-se ao pai. Estava exausto mas trazia em suas mãos a primeira rúpia que conseguira ganhar trabalhando duramente durante todo o dia.
Entregou-a ao pai com orgulho, dizendo:
— Eis aqui, meu justo pai, a primeira rupia que realmente ganhei trabalhando, com o suor do meu rosto.
Apesar de cansado, sentia um grande bem estar, satisfeito consigo mesmo, pelo esforço e pela mudança que percebia estar acontecendo.
Contudo, qual não foi sua surpresa quando pai, pegando a moeda, gritou com ele:
— Esta não é uma moeda que ganhaste trabalhando, por isso vou lançá-la ao fogo, como das outras vezes.
Alijabin desta vez não se calou ante as palavras do pai. Falou com ele em voz alta:
— Mas, meu pai, estou lhe dizendo a verdade. Trabalhei o dia inteiro na olaria, no mercado e na beira do rio para ganhar este dinheiro. Se quiser, vamos aos locais onde trabalhei, e verificará que estou falando a verdade. Este dinheiro foi ganho com muito esforço.
Mucandir Fujab olhou bem para o filho e abriu um grande sorriso.
— Agora, sim, acredito em você. Acredito que você trabalhou realmente o dia inteiro.
— E porque só hoje acredita em mim? — perguntou Alijabin.
— Porque ontem e anteontem você não protestou quando joguei a moeda no fogo. Hoje você protestou porque sabe que o dinheiro ganho com o trabalho não deve ser atirado, como palha sem valor, ao fogo do desperdício.
. . .
Vovó Bia fechou o livro e olhou para os três à sua frente e disse:
— Viram como não adianta mentir?
Dorinha disse, dando continuação ao pensamento da avó:
—Vovô fala que a mentira tem pernas curtas.
—É mesmo. Além disso, ficamos sabendo que somente o trabalho honesto proporciona às pessoas riqueza com honras. — Finalizou Vovó Bia.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2011 –
Conto # 648 da Série Milistórias – 3º. Da Série “Histórias de Vovó Bia”
domingo, 9 de outubro de 2011
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