A manhã ensolarada e fresca de Abril convidava sair de casa. Vovó Bia desceu os poucos degraus da escada e andou um pouco pelo jardim. Trazia a sacolinha com agulhas e linhas, que não abandonava em seus momentos de lazer. Caminhou na direção do pomar e ouviu as vozes alegres de Tavinho, Dorinha e Carlinhos.
Os netos, trepados nas laranjeiras, não se deram conta da aproximação da avó.
Os galhos das laranjeiras vergavam devido ao peso das frutas maduras, clarões amarelados destacando-se entre o verde da folhagem brilhante.
— Ei, crianças, cuidado aí em cima! Não vão despencar em cima de mim, hein?
Ante a aproximação da velha senhora, em passos miúdos, os netos desceram depressa das árvores e cercaram a avó.
— A senhora quer chupar laranjas? — Perguntou Dorinha, comas faces afogueadas e os cabelos desalinhados.
— Sim, quero sim. — Respondeu a avó. — Mas só duas. Não apanhem para desperdiçar.
Como dois coriscos, Tavinho e Carlinhos subiram na laranjeira mais próxima e lá de cima, gritaram:
— Segura aí, Dorinha. Estas são as melhores do pé.
Logo, estavam todos acomodados sob a folhagem densa das árvores. Vovó escolheu um tronco abatido para se sentar. Uma formiga passeava pelo tronco. Levava presa nas antenas um pedacinho de folha e antes de se sentar, Vovó Bia passou a mão delicadamente, afastando-a sem matá-la. E comentou:
— Vai, formiguinha, leva comida para seus amiguinhos.
— Uai, vovó, formiga não tem amigo, não. — disse Carlinhos, o mais velho dos três. — Elas trabalham para o formigueiro onde vivem. Trabalham como escravas. Já estudei na escola.
— Ah! Mas essa aí deve ser aquela da fábula. — Vovó Bia não perdia uma oportunidade de despertar a curiosidade dos netos sobre histórias, fábulas, livros e coisas que tais. — Essa aí tem amigos e até... uma inimiga!
— A senhora está falando daquela história da formiga e da cigarra? — Perguntou Dorinha.
— Esta mesmo, Vocês se lembram? A formiguinha que não parava de trabalhar...
— E a cigarra que não parava de cantar. Ela morreu de frio quando o inverno chegou, porque não tinha nenhum agasalho nem lugar para se esconder. — Completou Tavinho. —
— Isso mesmo. Mas aquela história é muito triste. E a cigarra, na verdade, não morreu de frio, não.
— Ué, mas no livro diz que...
— Sim, mas vamos imaginar uma coisa. Vamos pensar que a cigarra, com toda aquele dom de cantar, encontrasse um lugar para passar o tempo do frio. Foi numa toca abandonada, bem quentinha, que se abrigou. Havia até uns restos de folhas verdes, e ela sobreviveu. E de barriga cheia e bem aquecida, recomeçou a cantoria. Cantava e cantava. Os outros insetos — grilos, besouros, joaninhas, borboletas —, foram se aproximando ao ouvir a melodia da cigarra. E trouxeram-lhe mais folhas, talos verdes, com o que a cigarra matou a fome e até engordou um pouquinho.
— E a formiguinha? – quis saber Carlinhos, já completamente seduzido pela continuação da história.
— A formiguinha continuou a trabalhar, mesmo no inverno, coitadinha, pois essa é sua sina.
Vovó Bia tinha descascado a laranja e começou a saborear os gomos. Os netos estavam ansiosos pela continuação da história.
— Vovó, essa história foi escrita pelo mesmo escritor que escreveu aquela outra?
— Não, esta é outra versão. É uma continuação, uma adaptação. A primeira foi escrita por fabulista...
— Um fabulista? — estranhou Dorinha.
— Fabulista é um escritor que escreve fábulas. Este da formiguinha e a cigarra chamava-se La Fontaine. Não se esqueçam deste nome, para entenderem o final da história que estou lhes contando.
Depois de terminar a primeira laranja, Vovó Bia retomou a narrativa.
Passaram-se alguns anos. A Formiguinha continuou trabalhando, e foi envelhecendo, ficando fraca. Carregava pedacinhos de folhas cada vez menores. Sentia dores pelo corpo e caminhava devagar.
A cigarra, por sua vez, tendo conseguido abrigo e uma platéia constante para sua cantoria, ficou famosa e tinha sempre comida ao seu dispor, trazida pelos insetos que gostavam de ouví-la. Eles traziam também para ela agasalhos feitos de algodão, de pelos de animais, de penas das aves. Enfim, a cigarra vivia num bem-bom, muito diferente da vida sofrida da formiguinha.
Um dia, convenceu-se de que deveria ser ouvida em lugares mais importantes, nas cidades, onde haviam teatros, casas de espetáculos, nos quais ela poderia se apresentar. Encorajada pelo Grilo Falante (lembram-se? o da história do Pinóquio...), resolveu ir para o lugar das celebridades: Paris.
— Lá em Paris serei a cigarra mais famosa do mundo! — Falou para seus ouvintes. — E visitarei o famoso escritor La Fontaine, que escreveu sobre mim.
Preparou-se bem para a viagem. Sabia que enquanto é frio aqui, lá na Europa é calor. Por isso, arrumou sua malinha antes de chegar o inverno e vestiu sua roupinha mais chique, colocando até algumas jóias e enfeites na cabeça. Despediu-se dos amigos e saiu para a viagem.
No caminho, que grande coincidência! Encontrou-se com a formiguinha, aquela mesma que, muitos anos antes, havia batido com a porta na cara dela, negando-lhe abrigo numa tarde de muito frio e chuva.
A cigarra não guardava raiva da formiguinha. E teve até muita pena de ver como ela estava acabada, fraca, vergada sob o peso de um talinho verde, que levava para o formigueiro.
— Bom dia, Dona Formiguinha! Como vai? Está lembrada de mim?
A formiguinha parou, descansou o talinho no chão, passou as mãos pelas costas, gemendo. Ajeitou os olhos (a vista estava muito curta) e olhou para a cigarra.
— Você é a... a... deixe-me lembrar... (tosse) Ah! aquela cigarra que só vivia cantando, nunca quis trabalhar?
— Sim, sou eu mesma. Sabe, estou indo para Paris. Vou cantar no Place Pigale e no Moulin Rouge... já ouviu falar?
— Não, não, nunca ouvi falar desses lugares. Mas... (deu uma tossida, estava com um pigarro persistente) você vai prá Paris?
— Sim, a Cidade Luz. Vou até visitar o escritor La Fontaine, sabe? Aquele que...
— Ah! O senhor La Fontaine, sim, sei — respondeu a formiguinha. — Ele foi quem começou escrevendo nossa história.
— Pois é, dona Formiguinha. Se quiser, posso levar uma carta da senhora, uma mensagem, sei lá, qualquer coisa assim.
— Ah... (tosse)... uma carta (suspiro de cansaço) Ai... Que vida dura... Não, uma carta, não, minhas mãos estão tremendo, não consigo mais escrever. Mas um recado...
— Sim, um recado! — desse a cigarra. — Que quer que eu diga ao senhor La Fontaine.
— Diga prá ele... (tosse) que não é justo o que ele fez comigo. Veja só: eu aqui me matando de trabalhar, (tosse, tosse) estou acabada, velha, cansada, com frio e dores pelo corpo, a vista curta... e tenho de trabalhar até o último dia da minha vida. Enquanto que você, só cantando, nunca trabalhou (mais tosse). Está aí toda gordinha, agasalhada, nunca trabalhou, nem um dia de sua vida, só cantando... (tosse, tosse, tosse) Vai viajar... Diga para o senhor La Fontaine que não é justo... não é justo...
E pegando o talinho verde, colocou-o sobre a cabeça, ajeitou o xale em volta do pescoço, e lá se foi, arrastando os pezinhos, resmungando:
— Não é justo... não é justo...
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 9.fev.2011
Conto # 649 da Série Milistórias - Contos da Vovó Bia # 4
domingo, 9 de outubro de 2011
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