quinta-feira, 3 de junho de 2010

O MENSAGEIRO TROVADOR

As cidades são como as pessoas: nascem, crescem e morrem. Como muita gente, tem cidade que morreu e ainda não sabe. Ou mantém apenas vida vegetativa, como enferma numa UTI. Itaocamirim está assim: suas ligações com o mundo estão diminuindo, a população envelhecida, é a cidade do “já teve”: já teve dezenas de serrarias, de fábricas de móveis, já foi sede de departamentos regionais estaduais e federais. Cidade colonial, foi sede de vasta área, retalhada em uma dúzia de novos municípios. Da casa da moeda e da forca — importantes marcos da importância da cidade durante o século dezessete — só ficou a memória, registrada em alguns livros de autores locais, de restrita divulgação e desaparecendo gradativamente das mentes e corações dos habitantes idosos.
A perda irreparável, a pior de todas, ocorreu quando foram desativadas as duas estradas de ferro que passavam pela cidade.
— Esta cidade merecia estar no Livro dos Recordes: pequena cidade do interior que teve, ao mesmo tempo, duas estações de estrada de ferro! — explicava, orgulhoso, o venerando Major Calimério, que fora, no seu tempo de homem atuante, chefe da estação da Estrada de Ferro e, ao mesmo tempo, diretor da Banda de Música Maestro Calógeras Pitanga (em homenagem a outro grande itaoquensemirim).
— Toda a produção do município — café, couros, móveis, doces (ah! os doces famosos de Itaoca!), arroz, milho, feijão e fumo. Tudo era enviado para Campinas, São Paulo, Santos, pela Mogiana. Sem falar no trânsito de passageiros. Todos os dias passavam pela estação mais de duzentos passageiros, indo e vindo da capital, nas três composições: o expresso, cinco vagões só para passageiros e vagão-restaurante, descendo para Campinas, pontualmente passando aqui às sete da manhã; o misto, que era mais lento, pois era trem de carga mas que puxava um vagão de passageiros; e o noturno, também exclusivo para passageiros, com três carros-leitos, sempre lotados. Para viajar no carro-leito, havia de se fazer reserva com dois, três dias de antecedência.
— Cê tá se esquecendo da importância da “São Paulo-e-Minas”. — Intervém Leovigildo, simpático velhinho, na casa dos noventa anos, todo branco, cabelos, barbicha e terno de brim alvejado. Um dos últimos sobreviventes da era de ouro das ferrovias na Itaocamirim. — Pela SPM também viajava muita gente e muita mercadoria era transportada.
— É verdade. E todas as duas ferrovias tinham seu serviço de telégrafo. Eta organização danada de boa. Na Mogiana havia até um serviço para uso do público: podia-se enviar telegramas entre as cidades servidas pelas ferrovias. Naquele tempo, um serviço mais eficiente do que o telégrafo do correio. Cê se lembra, Leo?
— Se me lembro! Tinha um serviço de estafetas: assim que o telegrama batia no Morse e era transcrito para o papel, o Chico Mensageiro saía para a entrega da mensagem.

Chico Mensageiro fora um dos funcionários mais eficientes que já trabalhara no serviço de estafeta: alto, magro, sempre nos trinques, brilhando no seu uniforme azul impecavelmente limpo e bem passado, o quepe de influência militar assentado elegantemente no cocuruto. Com as passadas longas, chegava expeditamente onde quer que o telegrama devesse ser entregue.
— Olha a lei! Olha o telegrama! — Era o seu jargão, que gritava, ao mesmo tempo em que batia com os nós dos dedos nas portas, ou palmas defronte aos portões. Ao fazer a entrega da mensagem, brindava o destinatário com uma quadrinha, um verso, que improvisava na hora. Que nada tinha a ver com a mensagem, com o receptor ou com o serviço.
Queijo cum rapadura
Pinga com Capilé
Taí duas mistura
Mió que muita muié
Figura ao mesmo tempo representante da eficiência de um trabalho muito simples, e folclórica, pela sua maneira elegante e particular de se desincumbir da missão.
Desativadas as ferrovias, os empregados foram transferidos para outras cidades. Ou, simplesmente, aposentados, como foram Major Calimério, Leovigildo e Chico Mensageiro.
Para o elegante mensageiro-trovador, a aposentadoria foi uma questão crucial.
— O homem endoidou da noite para o dia. — Leovigildo lembra com nostalgia. — Em vez de se recolher no descanso, o homem continuou percorrendo a cidade, metido no seu uniforme,sempre aprumado, procurando destinatários imaginários para entregar mensagens jamais enviadas.
— Olha a lei! Olha a lei! — Adentrava-se pelas casas comerciais, onde, não tendo telegramas para serem entregues, satisfazia-se declamando uma quadrinha surrealista:
Caiu do galho seu Mané
Quando colhia mandacaru
Rosinha botou angu
Donde Mane quebrou o pé
Com o passar do tempo, a mania do velho Chico Mensageiro foi se intensificando, tornando-se patológica. Os garotos (ah! a crueldade dos infantes!) começaram a acompanhá-lo, espicaçando-o com mote, gritando de longe:
— Olha a lei! Olha a lei!
Gritavam e corriam, pois Chico se incomodava e os perseguia , as longas pernadas compensando, e até ultrapassando, os passos curtos da meninada. Nunca aconteceu de pegar nenhum guri.
No seu desvairo, pegava as pessoas pelo braço e incontinenti tascava-lhes, de uma só vez, o bordão e a quadrinha:
Olha a lei! Olha a lei!
Quatro coisa num se segura:
Fogo de morro acima
Água de morro abaixo
Ladrão quando qué robá
Muié quando qué dá.
Louco furioso não chegou a ficar. Tornou-se inconveniente, abordando as pessoas a qualquer hora do dia (felizmente,se recolhia cedo ao seu quartinho, único patrimônio que obtivera nos idos anos de trabalho).
— Foi preciso interná-lo. Mandamos ele pra Barbacena. — Rememora Major Calimério.
Foi triste o dia em que, despojado de seu uniforme, metido em uma camisa de força, foi embarcado numa viatura da polícia. Alguns amigos limpavam furtivamente lágrimas de pesar. As crianças mantinham-se caladas, acabara a graça de mexer com o velho maluco.
Mesmo degradado, o velho Chico Mensageiro, de pé, antes de entrar no veículo, olhando para baixo, do alto de seus quase dois metros de altura, dedicou uma mensagem final ao povo do qual se despedia:
Olha a lei! Olha a lei!
Riamos, riamos, enquanto possamos
Porque os dias de rosas e de vinho
Já tão chegando ao fim.

ANTONIO ROQUE GOBBO escreveu em 12 de fevereiro de 2003
Conto # 207 da Série Milistórias

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