Lilico não era um homem de meias palavras. Dizia o que tinha de ser dito, sem medo de ofender presentes ou ausentes.
— Home, pra dizer a verdade, cumpadre Mizaér, cê tá caducando. Comprá aquelas terrinha, do lado de lá do Corguinho, foi besteira das grande.
Ou:
— Muié, iscuita o que tou falando. Essas visita do Leôncio de amiúde tá me parecendo que ele tá querendo arguma coisa com a Cidinha.
E para a filha Cidinha:
— Oia, quando o Leôncio chegar, cê vê se não aparece pra ele.
E para o visitante insistente:
— Tá bom, seu Leôncio, gosto muito da sua prosa mas é bão o sinhor rariar nas visita, que a Cidinha ainda num tá pronta, não sinhô.
Sincero. Homem de palavra. O que prometia, cumpria. E foi por dizer o que pensava e pelo estrito cumprimento da palavra dada, que passou pela experiência mais estranha da sua vida.
Aos anos bons, das vacas gordas, sucederam-se os tempos difíceis, das vacas magras. Lilico, em que pese a boa administração de sua fazenda, se viu numa situação de aperto financeiro, quase sem recursos para manter o gado, fazer as plantações, tocar a lavoura de café.
— Diacho! Dava quarquer coisa pra num ver a criação finando nos pasto seco. Pra tocar o cafezar.
Homem orgulhoso, não queria fazer empréstimos nem com o banco nem com os outros fazendeiros. Os quais, aliás, estavam na mesma situação de Lilico. Devendo na praça, os negócios indo de mal a pior.
Uma tarde, uma visita inesperada: cavaleiro viçoso, montado com elegância num enorme alazão negro, trajando terno preto e arreios enfeitados de botões e frisos de prata.
— Boas tardes! Dá Licença? — Gritou, da porteira.
— ’Tardes! Vamo entrá. Teje à vontade, a casa é sua. — Respondeu Lilico, da varanda.
Conversa vai, conversa vem, o forasteiro mostrou a que vinha: queria ajudar Lilico.
— Ouvi falar que o senhor daria qualquer coisa pra ter os meios de tocar a fazenda. — Verdade verdadeira, moço. Tou morrendo de tristeza vendo minhas vaca
definhando. Argumas até já finaram. O pasto secando, o cafezar murcho e amarelando as foia.
— Tenho bastante recurso e quero lhe ajudar. O senhor dá mesmo qualquer coisa em troca?
— Pra falar a verdade, de minhas posse, tirando a muié e a Cidinha, dou, sim, quarquer coisa.
— Até sua alma? — um brilho faiscou nos olhos do homem de preto.
— Uai, seu...! A minha arma...?
— Pois é, o senhor é homem de palavra, não é mesmo. Disse que daria qualquer coisa para melhorar sua situação.
Lilico titubeou. Deu uma pitada no cigarro de palha, coçou a cabeça, matutou uns instantes. Depois, achou que o visitante estava brincando. Sentiu-se humilhado e respondeu, firme:
— Craro, dou sim, minha arma, a hora que o sinhô quizé.
— Fique tranqüilo, não quero agora não. Deixo hoje o dinheiro, e venho buscar a sua alma mais tarde.
Da montaria puxou duas sacolas pejadas de dinheiro. Lilico ficou pasmo.
— Uai, mais aí tem muito mais do que vale a minha arma.
— Pois é. Milhares de contos de réis. Tudo pro senhor usar. A sua alma, venho buscar qualquer dia desses.
Terminando a fala com uma gargalhada, o homem de preto desapareceu.
— Ara, xente, podia esperar prum cafezinho. Num deu nem tempo.
Com os milhares de contos de réis — nunca contou o dinheiro para saber exatamente o quanto tinha recebido — Lilico aprumou na vida. Tomou todas as providências para salvar o gado, recuperar a lavoura de café, plantar as roças de milho, aumentar a criação de porcos. Enfim, a prosperidade entrou de novo na vida de Lilico.
Anos se passaram, e Lilico cada vez mais rico. Comprou mais terras. Cidinha casou-se com Leandro e já lhe proporcionara meia dúzia de netos.
Até que meio esquecera do negócio com o homem de preto, do qual não sabia nem o nome. A mulher, entretanto, não o deixava esquecer completamente o trato.
— Tá bão, muié. — respondia Lilico, sem paciência. — Trato é trato. Vô honrá minha palavra. O dia que o home vié, lhe entrego minha arma. Minha palavra é de lei.
O homem de preto voltou, um dia, para cobrar o trato. Chegou no mesmo alazão, a mesma arreata, o mesmo homem simpático, dando risadas. Apesar dos muitos anos, sua aparência era a mesma. Não tinha envelhecido um dia.
— Dá licença? Gritou da porteira.
— Vamo entrando. — Respondeu Lilico. E quando viu de quem se tratava: — Gente, é o sinhor de novo?
— Pois é, seu Lilico. Vim terminar nosso negócio. Vim buscar sua alma.
— Apois, sente-se, fique a vontade. Vou busca a arma. — Entrou na casa. Não teve tempo de ver um esboço de surpresa no rosto do homem de preto.
Volta, em seguida, trazendo um pesado mosquetão, verdadeira relíquia, que há anos não funcionava mais. Embora antiqüíssima, brilhava nos metais e na coronha envernizada, bem cuidada pelo proprietário.
— Aqui está! Cuidei dela esse tempo todo, esperando o sinhor vim buscar. Tá até bem vistosa, num tá mesmo? Só num tenho é munição pra ela.
O homem de preto agora, sim, revela sua surpresa:
— Mas, seu Lilico, eu vim buscar o prometido no negócio, a sua alma. Não quero saber desse trabuco aí, não.
Lilico se ofendeu com as palavras do benfeitor desconhecido.
— Oia, moço, o sinhor pode até falar bem correto, com todos esses efes e erres aí, mais o prometido taí: eu falei que lhe entregava minha arma, num foi? Pois aí tá a minha arma de estimação, que guardo há mais de num sei quanto tempo, só pra cumprir nosso trato. Agora, é pegá ou largá. Trato é trato.
Assobiando e rugindo, o homem de negro desapareceu num vórtice de poeira que correu pela varanda, pelo quintal, no ar quente de agosto.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE = 10 DE SETEMBRO DE 2003
CONTO # 241 da Série MILISTÓRIAS
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
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