quarta-feira, 3 de março de 2010

CORAGEM SEM LIMITES

— Meu filho Mirinho vai ser doutor, sim senhor!
O pai era taxativo. Contudo apenas expressava o que Almir dizia sempre em casa:
— Vou estudar, um dia vou ser importante. Vou tirar nós todos desta vida miserável.
Mirinho não se cansava de dizer para seus pais, para os quatro irmãos e para os colegas da escola rural de Carpina, na zona da mata pernambucana.
A vida era dura para aquela pequena família. O pai era agricultor e labutava na pequena propriedade, quando o tempo ajudava e a roça vingava. Então, a família tinha um desafogo nas necessidades. Mas, na maior parte do tempo, as dificuldades eram a constantes, rondando o casebre de paredes de pau-a-pique, chão de terra-batida e telhado cheio de buracos.
Na escola era dedicado e gostava de fazer contas. A professora o incentivava.
— Você tem jeito para números, contas, cálculos. Suas contas estão sempre certas, nem é preciso corrigir.
Antes de completar quinze anos, Almir arranjou emprego num pequeno engenho no qual labutava o dia todo por míseros cruzeiros. A pouca renda não desanimava o garoto magro e queimado de sol. Pelo contrário, sua dedicação ao trabalho foi notada pelo patrão.
— Esse moço vai longe. Sabe fazer contas como ninguém. — Dizia seu Raimundo, que o encarregara de fazer anotações e cálculos no engenho.
Conseguiu matricular-se na faculdade, graças à sua paixão pelos números. E cada vez mais fascinado pelos cálculos, por números, frações e decimais, formou-se com mérito.
A cada dificuldade, Almir se firmava e se superava, forjando uma personalidade forte, de homem que nada temia e aceitava todos os desafios.
Candidatou-se mediante concurso público a uma vaga de professor. Lecionava desde 2003 na Faculdade de Professores da Universidade de Pernambuco, em Nazaré da Mata, quando foi reconhecido por suas investigações na área da Matemática Pura. Após defender sua tese de doutorado, em 2004, o doutor Almir Olímpio Alves foi convidado pela Universidade de Binghamton para fazer o pós-doutorado.
Almir e Márcia se casaram em 1992. A paixão de Almir pelos números era tão intensa e contagiante que levou Márcia a se encantar também pelos números e mudar de profissão. Almir e Márcia tiveram em 1993 o único filho, Allan.
Viajou para os EUA em setembro de 2008. Vivia em Binghamton, cidade a 220 quilômetros a noroeste de New York. No período da manhã, entre nove e doze horas, freqüentava a classe de inglês da professora Elizabeth Hayes, na Associação Cívica Americana, a fim de aprimorar o conhecimento do idioma. Era onde se encontrava na manhã do dia 5 de abril de 2009, quando a porta da sala de aula foi aberta num empurrão violento e um homem pequeno entrou, empunhando armas em ambas as mãos.

“Pelo menos duas pessoas voltarão comigo à poeira da terra”. Esta terrível ameaça estava escrita num papel sujo e amassado, encontrado no boldo de Jiverly Woong, o homem que invadiu a Associação Cívica Americana, armado com dois revólveres, disposto a matar muita gente. Woong era vietnamita e morava nos Estados Unidos há muito anos.
Apesar de freqüentar o curso de inglês da Associação Cívica Americana, nunca lograra aprender o idioma, o que o tornava alvo de chacotas e gozações por parte dos colegas da IBM, onde conseguira um emprego de faxineiro.
Estava deprimido porque perdera o emprego na IBM e não conseguia trabalho em lugar algum. Pobre, frustrado e sem ver uma saída, armou-se de dois revólveres e dirigiu-se à escola da Associação a fim de por em prática o terrível plano de vingança contra tudo e contra todos.
Entrou atirando. A figura mirrada e amarela, os cabelos desgrenhados, olhos saltados, estava mais para bizarra do que qualquer outra coisa. Mas os revólveres, um em cada mão, mostravam a disposição para a morte.
Pelos corredores, foi alvejando a torto e a direito. Com certeira pontaria, foi deixando um rastro de sangue e morte por onde passava.
Ao entrar na sala de aula onde Almir e mais oito alunos estavam, deparou-se com o inusitado. Do fundo da sala, um homem moreno, ágil e corajoso, levantou-se e ao mesmo tempo empunhou uma cadeira, que atirou contra o vietnamita.
Almir não titubeou nem um só instante em enfrentar o bandido. A coragem e a bravura falaram mais alto, e a reação foi imediata. A cadeira atingiu de raspão o minúsculo atirador, que atirou em Almir duas vezes. Antes mesmo que Almir tombasse sem vida, Woong alvejou os outros estudantes.
Uma das primeiras vítimas de Woong, a recepcionista Jane Lyman, que havia levado um tiro na barriga, se fingiu de morta e ligou para a polícia, que chegou minutos depois do massacre. O atirador havia feito treze vítimas, mas a polícia não chegou a tempo de evitar que ele metesse um tiro na própria cabeça.

ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 25 de maio de 2009
Conto # 544 da Série Milistórias
Todos os contos da Série Milistórias são arquivados na Biblioteca Nacional-Rio de Janeiro

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