quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

DONA FILÓ CONVERSA COM DEUS

O ritual se repete todo dia cinco de cada mês, dia de receber a aposentadoria. Dona Filomena levanta-se mais cedo, para uma caprichada toalete matinal. Não toma café em casa. Muito prática, passa pelo Supermercado Boa Compra, onde há sempre um cafezinho e algumas quitandas para os clientes matinais.
— Bom dia, seu Genésio.
— Bom dia, dona Filó. Maravilhoso dia, não é mesmo?
— É verdade. — Ela não se estende nos comentários, preocupada com a longa caminhada até o centro da cidade.
Após lecionar por mais de trinta anos no Grupo Escolar Major Salustiano Alves, tendo exercido o magistério como um sacerdócio, ela agora se dedica, com o mesmo afinco, às coisas de Deus. Sai diariamente para ir à missa da manhã, na igreja do bairro onde mora. Hoje, dia de lidar com as coisas materiais, ou seja, o seu estipêndio mensal, recompensa parca por tantos anos de serviços prestados ao estado, assistirá à missa antes da ida ao banco.
— Meu Deus, agradeço por tudo o que me tem sido oferecido. Pela felicidade, pela tranqüilidade da minha vida, pela saúde. — E assim ora, conversando coloquialmente com Deus. Não reza as orações decoradas, Padre Nosso, Ave Maria ou Salve Rainha. Dispensa também terços e rosários.
— Deus não é surdo, a gente não precisa ficar repetindo infinitamente essas orações. Isto é um aborrecimento para Ele, que sabe de tudo o que precisamos. — É prática na sua fé, sua fala é direta e sincera. Gosta de ler a Bíblia, que traz sempre consigo, na bolsa.
O exercício da profissão, feito com dedicação integral, não lhe permitira relacionamentos outros além daqueles com as colegas de escola e com seus alunos. Trabalhara numa época em que a escola pública só empregava mulheres, assim como os bancos só empregavam homens. Os contatos com os pais dos alunos eram raros, feitos pela diretora . Assim, dona Filomena permaneceu solteira, como vestal de seu mister. A custo, conseguiu comprar uma casinha, modesta, pequena, suficiente apenas para seu modo espartano de viver.
Entretanto, mantém as velhas amizades. Participa de grupos de estudos bíblicos na Igreja, de bingos beneficentes, faz viagens com a “turma da terceira idade”, e, ultimamente, começou a freqüentar um curso de inglês.
— É só para ajudar a passar o tempo. — explica.

Após a missa, lá vai Dona Filó subindo a comprida Avenida Presidente Juscelino, rumo ao banco. Passo miúdo mas ágil. Seu porte altaneiro destaca o corpo magro, dando a impressão de ser mais alta do que o metro e sessenta de altura. Usa sapatos de salto e veste-se com discrição. A face, com algumas rugas, é emoldurada por cabelos grisalhos, cortados curtos. Olha para a frente e cumprimenta com alegria a todos os que cruzam seu caminho.
Uma fila de dez ou doze pessoas se faz à porta do estabelecimento, que se abrirá às nove horas em ponto. Entra na fila e logo inicia conversa com os companheiros, todos aposentados.
A rapidez do caixa que atende exclusivamente os aposentados é retardada pelas dificuldades de alguns em assinar os documentos ou pela exuberância verbal de outros, que querem estender a conversa, maneira de se distraírem e de trocar palavras com o simpático atendente. Mas a fila caminha e chega a vez de dona Filomena.
Responde com cortesia à presteza do funcionário, recebe o dinheiro, confere, dobra as notas e coloca o minúsculo pacote de duzentos e quarenta reais na sua bolsa que leva a tiracolo. De onde tira um carnê do Baú da Felicidade, apresentando-o para pagamento da mensalidade. Com cuidado, faz estalar o fecho da bolsa, certificando-se de estar bem fechada.
De volta ao lar, desce novamente pela movimentada avenida e em seguida toma a Rua das Acácias, estreita, quase deserta naquela hora da manhã. É onde fica a sua casa.

Repentinamente, sente um puxão na alça da bolsa, por trás. Tem bons reflexos, e aperta o braço esquerdo junto ao corpo, prendendo a alça. Ao mesmo tempo, agarra a bolsa com a mão direita. Assustada, não sabe o que está acontecendo e se vira. É empurrada e perde o equilíbrio. Ao receber um tranco maior na bolsa, cai. E vê, ainda na queda, o franzino moleque que lhe toma a bolsa e sai correndo. O joelho, esfolado na queda, arde. O ombro esquerdo dói, pela força em segurar a bolsa e pelo esforço do pivete em arrancá-la. Tudo acontece rapidamente. O susto é tão grande que dona Filó perde a fala, emudece, não emite um som, um pedido de socorro. O que nem adiantaria, pois a rua está deserta.
Ergue-se com dificuldade. Está confusa. Senta-se por alguns momentos no meio-fio. Não sente raiva, apenas uma tristeza por se ver tão impotente perante um assalto. O assaltante devia estar na escola, é um garoto ainda. Em outros tempos, seria meu aluno. Apalpa-se, passando as mãos pelo corpo, nos ombros. A perna também lhe dói. O joelho, esfolado, sangra e tem terra no ferimento.
Olha para um lado, para o outro: ninguém na rua. O pivete desapareceu num átimo, virando a esquina mais próxima. Acho que posso caminhar. Sente mais dores ao se levantar, mas se apruma, finalmente. Ave Maria, que susto! Perdi minha aposentadoria deste mês. O pior é a Bíblia, os documentos! Vou ter um trabalhão para ter novos documentos.— Vai pensando, enquanto percorre os poucos quarteirões até sua casa. E onde é que se meteu a gente desta rua? Não se vê ninguém, as casas trancadas. Parece pesadelo. Será que estou sonhando? A dor no joelho lembra-lhe de que não se trata de sonho e sim da realidade cruel.

Passa o resto do dia em casa, descansando e pensando no acontecido. Não tem mágoa. Na sua magnanimidade, chega a entender a violência do rapaz. É esta sociedade hipócrita que faz este tipo de gente. A miséria e a fome estão por toda parte.
Faz um balanço das perdas. Além do dinheiro, cuja falta irá lhe causar transtornos reais, lá se foram os documentos de identidade e do INSS; sua carteirinha de sócia do “Grupo da Terceira Idade”; a Bíblia, que mantém sempre consigo; o livro do curso de inglês. Ah! e lá se foi também o carnê do Baú! Este é prejuízo total.
À noite, antes de se deitar, é hora de conversar com Deus.
— Amado Senhor: sou uma mulher honesta, sempre fui trabalhadeira, nunca prejudiquei ninguém, e não acho justo ser roubada assim. Agredida desse jeito. Quero minhas coisas de volta. Sei que o pivete tem suas razões. Mas não sou eu que vou pagar pelos pecados da sociedade e do mundo. Aguardo e confio tranqüilamente na Vossa Providência. Que todas as minhas coisas roubadas voltem para mim.
No dia seguinte, antes mesmo de sair para a missa, é procurada pelo funcionário do banco que lhe atendera na véspera.
— Vim lhe entregar o carnê do Baú, que a senhora esqueceu no meu guichê, ontem de manhã.
Na missa, ela continua a conversa com Deus:
— Obrigado, Amantíssimo Pai, pela devolução do carnê. Sei que todas as outras coisas roubadas voltarão às minhas mãos.
Uma seqüência de fatos simples, mas significativos, ocorreu. No bingo daquela semana — ao qual a aposentada compareceu manquitolando — ganhou uma Bíblia, idêntica à roubada. Da professora de inglês ganhou um exemplar do livro do curso que freqüentava. Uma semana após o incidente, um garotinho bateu à sua porta.
— Dona, achei esta bolsa com uns documentos da senhora e vim devolver. — É óbvio que se tratava de um mandado do assaltante, que não vendo utilidade em ficar com os documentos, os devolvia, com a bolsa, de pouco ou nenhum valor de venda. O garoto teve sua recompensa da boa senhora: como era hora do almoço, ela o fez entrar e almoçar com ela. E lhe deu dez reais como gratificação pelo grande favor que lhe prestara.
Dona Filomena confiava totalmente em Deus. Ao mesmo tempo em que agradecia o retorno de seus bens, reafirmava essa confiança:
— Obrigado, Senhor! Sei que tudo voltará às minhas mãos, e agradeço por antecipação.
Sua certeza na Providência Divina ficou consagrada quando, no final do mês, ao conferir os números de seu carnê do Baú da Felicidade, verificou que fora contemplada com um prêmio no valor de duzentos e cinqüenta reais.


ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 19 DE JANEIRO DE 2004
SÉRIE MILISTÓRIAS – CONTO # 264 -

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