sábado, 5 de dezembro de 2009

AVISO NA CADEIA

Serena e pacata, a cidade mais parece um presépio: vista do mirante do Alto da Boa Vista, os telhados coloniais, enegrecidos pelas centenas de anos expostos a sol e chuva, entremeados por copadas árvores, destacando-se no centro a torre modesta da única igreja, a cidade parece adormecida.
Aconchegada entre o vale e defrontando-se com o rio que desliza mansamente, é a própria imagem de paz e tranqüilidade. A essa tranqüilidade somam-se os gorjeios dos pássaros nas copas das árvores e, à medida que a se caminha pelas calçadas estreitas, ouvem-se conversas e risos vindos do interior das casas construídas ao rés da rua.
O sossego da cidade não é prejudicado por veículos motorizados nem por pessoas azafamadas. Tudo é calmo e tranqüilo. Apenas ao amanhecer há um certo rebuliço na margem do rio: são os pescadores que saem para o ganha-pão diário, a pesca no rio. Saem todos ao mesmo tempo, e dirigem-se para os diversos locais onde abundam as traíras, os carás, papa-terras e surubins. Voltam invariavelmente com os barcos pesados, pois o rio é generoso e fornece comida e subsistência para todos os habitantes do pacato lugarejo.
Nem mesmo a volta dos pescadores quebra a quietude local. Eis que voltam cada qual em seu tempo, chegando tranqüilamente, sem alarido, e vão recolhendo o pescado, que é limpo ali mesmo, na beira do rio, as entranhas jogadas na água, servindo de alimento para outros peixes e para as aves que sobrevoam o local.
Ali não há violência nem crimes. Não é de hoje que a tranqüilidade predomina sobre a cidade.
— Seu moço, há mais de quarenta anos que num acontece um crime de morte aqui em Trairínha. — Quem informa é o Manoel Galego, um negro-aço, que usa óculos escuros até mesmo à noite, para se defender da claridade que lhe prejudica a visão. — Sou carcereiro há 52 anos, trabalho na cadeia desde menino e nunca tive problema com os presos. Que, alinhás, agora são apenas dois: Juca da Marimba, que cumpre pena por ter assaltado a venda do Seu Marcionílio, e o Totoim Maneta.
— E qual foi o crime desse Totoim Maneta? — O visitante é curioso, quer saber detalhes a respeito de tudo sobre a cidade.
— Home, pra lhe dizer a verdade... ele está na cadeia “de passage”. — Nota-se uma certa resistência na prestação da informação.
— Como, de passagem?
— É, ele não é daqui da cidade não. Aprontou uma zaragata na Vila dos Biribas, faz alguns anos, e como lá num tem cadeia, foi mandado pra cá. Alinhás, nem sei quanto tempo tem de ficar preso.
— E o delegado, ele sabe quando vai soltar o Totoim Maneta?
— Sabe não. O Doutor Delegado num mora aqui, não sinhor. Vem aqui umas duas, três veiz por ano. Alinhás, nem o Totoim tá preocupado em sair da cadeia.
— Como assim?
— Pra ele, a cadeia é sua casa. O senhor já viu que a cadeia num tem nem grade. Pois o Totoim e o Juca só aparecem mesmo é pra dormir. Saem de manhã, vão arrumar serviço, ajudam os pescadores na limpeza dos peixes, ganham um prato de comida aqui e ali, e voltam de noite pro xadrez.
— Passam todos os dias fora da cadeia?
— Deveras! Alinhás, seu moço, não tenho maneira de fornecer comida pros dois, o jeito é deixar que eles se virarem por aí...
— E aquele aviso que está dependurado ali na porta da cadeia?
— Ah, é por conta do relaxamento dos dois. Imagine que ultimamente os dois deram pra chegar muito tarde da noite. Teve uma noite em que o Juca nem veio para dormir. E eu esperando ele aqui, pra fechar a porta da cadeia. Passei a noite aqui, em claro, sentado naquele banquinho duro. Muita folga dos dois. Por isso, mandei o João Pio, sacristão que sabe todas as letras e palavras, até em latim, escrever esse aviso aí. Alinhás, preguei esse aviso hoje de manhãzinha, poucas horas antes do senhor aparecê.
O visitante levanta a cabeça e lê os garranchos garatujados num pedaço de papelão:

"De amanhã em Diante,
o preso que não voltar até as dez horas
DORME FORA"

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Antonio Roque Gobbo
Belo Horizonte, 23.11.2001Conto # 128 da Série Milistórias

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