domingo, 3 de fevereiro de 2013
SACI PRESO NA PENEIRA
Os psicólogos e educadores dos tempos atuais— primeira década do século 21 — estigmatizam a educação das crianças de há 60 ou 70 anos atrás. Dizem que as histórias infantis daquela época – Branca de Neve, Joãozinho e Maria, Chapéuzinho Vermelho, entre outras — são histórias de terror, de medo, de suspense e que podem ser a causa de muitos problemas psicológicos dos adultos de hoje.
Sem falar nas canções de ninar— Atirei o Pau no Gato, Dorme Nenê Senão a Cuca Vem te Pegar, etc. — seriam politicamente incorretas ou totalmente inadequadas para as crianças de então.
Ledo engano. Minha geração e outras que foram criadas ouvindo aquelas histórias e cantando essas canções, é muito mais equilibrada do que as posteriores. Sem falar nos desafios que eram propostas nas intimidações com o fito de evitar que crianças fizessem “artes”. Mas quanto maior a proibição ou a ameaça, mais a gente sentia vontade de fazer o que eram consideradas diabruras infantis.
O que era lenda para os adultos era pura realidade para nós, crianças. Havia, entre outras, a história misteriosa do Saci Pererê, pretinho de uma perna só, barrete vermelho na cabeça e cuja presença era anunciada por assobios, trocava as coisas de lugares, escondias os objetos de uso mais constante e confundia as pessoas Diziam até que fazia os idosos se esquecerem de onde tinham colocados os óculos ou as dentaduras.
— Tomem cuidado! Quando ouvirem um assobio dentro de um redemoinho, o Saci tá lá!
E tinha mais. Havia a possibilidade de prender o Saci.
— É só jogar uma peneira na direção de onde vêm os assobios que ele fica preso debaixo da peneira.
Como era praticamente impossível a tríplice conjunção — ter uma peneira à mão quando passasse um redemoinho e ouvir os assobios do Saci, prender o pretinho era inimaginável.
Além do medo. Imagine, prender o Saci! Quando ele escapulisse, na certa iria se vingar.
Mas... quem pode com criança?
Anselmo era corajoso, o mais atrevido da turma. E foi numa tarde quente, no quintal de sua casa, que tudo aconteceu. Jogávamos bolinhas de vidro, num brinquedo chamado gude no terreno limpo. Dona Helena tinha acabado de lavar a peneira usada na cozinha e a colocara a secar sobre um banco rústico. Peneira de taquara, de treliça fechada.
Somente nós quatro, Anselmo, eu, Daniel e Juquinha, garotos de dez ou onze anos. A gente discutia todos os lances do jogo, quando passou por nós um pé de vento, zunindo, trazendo poeira e folhas secas.
Em seguida, ouvimos sons no meio do redemoinho. Pareciam assobios.
— Viche Maria! — Gritou Anselmo — É o Saci!
— Corre gente! — Gritei, e comecei a correr. Os outros me seguiram, menos Anselmo, que gritou:
— Vou pegar ele!
Quando olhei para trás, vi Anselmo pegando a peneira e jogando-a sobre o local de onde partiam os sons.
Paramos, os três que corriam. Anselmo pulava de um lado para o outro rodeando a peneira, que, por força do vento, balançava nas beiradas. E gritava:
— Peguei! Peguei! O Saci tá preso!
Parece que os assobios se intensificaram. Era uma barulheira, misturada com os gritos de Anselmo. Escondi atrás do tronco grosso da laranjeira. Juquinha e Daniel agacharam-se atrás do tanque de lavar roupa.
Os momentos daquela parafernália de sons duraram, para nós, uma eternidade, até que os ruídos foram sumindo e a peneira se aquietou sobre o chão.
Com o silêncio, o suspense aumentou.
— Ele tá lá debaixo, esperando alguém tirar a peneira pra ele sair. — Disse Daniel.
Anselmo se juntou a nós, agora sim, com medo da raiva de Saci quando ficasse solto. Todos tremíamos que nem varas verdes, de terror.
— Vamos prá dentro de casa. Lá ele não entra.
Entramos na cozinha. Dona Helena desconfiou de que alguma coisa havia acontecido.
— Ces tão com cara de quem aprontou. Que foi que fizeram no quintal?
— Nada não, mãe. — Disse Anselmo.
— Sabe, dona Helena...? A gente tava brincando... aí o Saci chegou num pé de vento...
— Que besteira é essa?
— Juro! Até ficou preso...
— Ara, vamos lá ver que vocês aprontaram.
Anselmo, ainda com medo (e ele era o mais corajoso da turma) disse:
— Não mãe, deixa prá lá. Amanhã a gente tira... ele tá debaixo da peneira.
— Peneira? Que é que vocês fizeram com a minha peneira?
Sem esperar resposta, dona Helena saiu para o quintal. Nós fomos atrás.
Ela viu a peneira no chão do quintal.
— Seus porqueiras! — e assim dizendo, pegou a peneira do chão.
Quando vimos que nada havia debaixo da peneira, ficamos aliviados.
— Olha só, tinha lavado a peneira, agora tá suja de terra. Que foi que vocês fizeram?
E sem esperar resposta, pegou Anselmo pelo cangote e deu-lhe alguns puxões de orelhas.
— E vocês, cambadinha, vão procurar o Saci nas suas casas.
É claro que ninguém espalhou a história – um tanto pelo medo que passamos, outro tanto pela reprimenda de Dona Helena, que nunca soube que, sem querer, tinha liberado o Saci da sua prisão, debaixo da peneira.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 17 de janeiro de 2013
Conto # 765 da Série Milistórias
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