quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A RODA VOADORA

Ana Cláudia, a facilitadora dos encontros de mulheres da terceira idade observou, com satisfação, o grupo de respeitosas senhoras, transformadas, naquela tarde, em crianças aterrorizadas pelos causos de fantasmas, assombrações e histórias do outro mundo, contadas por elas mesmas, com detalhes de arrepiar os cabelos.
Ana havia pedido às simpáticas velhinhas que se recordassem de episódios de suas vidas, de fatos relacionados com a fantasia, o fantástico ou o sobrenatural. Agora era Dona Eduína quem narrava seu causo.
— Na ocasião em que vi aquela coisa infernal, a gente morava na fazenda. Naquela noite, eu e meu marido voltávamos de uma visita ao compadre Limírio e comadre Genoveva, que moravam cerca de meia légua da nossa sede. A noite, mesmo sem lua, era clara, e no céu limpo de abril brilhavam milhares de estrelas. Marcionílio levanta uma lanterna, que ele só acendia quando a gente passava pelos socavões, onde a estrada ficava mais escura. Foi ao sairmos de uma passagem ensombrada que vimos uma luz muito brilhante, alaranjada e que aumentava rapidamente.
— É um avião! Tá caindo! — Marcionílio gritou, assustado. — E vem na nossa direção! Vamos correr, mulher!
Me puxou pela mão, de volta para a cava escura da estrada. Nem bem a gente se escondeu, a bola de luz parou em cima do pasto onde umas vaquinhas estavam deitadas, ruminando. Então, eu juro que vi: a luz era agora vermelha, e tinha a forma de uma enorme roda de carro de boi. A roda ficou suspensa no ar, uns quarenta ou cinqüenta metros acima do chão. Era uma roda enorme, cobria quase que o pastinho todo. Nas beiradas da grande roda, muitas luzes vermelhas e amarelas piscavam que piscavam. A roda era bem lisinha por fora, muito brilhante, parecia um espelho que refletia as próprias luzes, que não paravam de piscar. Dava a impressão de estar girando lentamente. O centro da roda era escuro, uma rodela de carvão no meio do braseiro.
—Virgem Maria, São Bento, nos protejam! É um disco-voador! — Marcionílio estava aflito, tentando me proteger com seu corpo. Mas estávamos bem escondidos e a gente não via ninguém, nenhum movimento de pessoas ou o que quer que pudesse estar dentro da grande roda.
Duas vacas que estavam debaixo do luzeiro se assustaram, levantaram-se e correram. Uma delas, protegendo seu bezerrinho, ia mais devagar. Fiquei mais abestalhada quando do centro daquela grande roda desceu um jato de luz violeta. O facho girou para um lado, girou para o outro, veio na direção da cava onde eu e meu marido tremíamos de medo. Passou rente ao barranco, atrás do qual a gente estava, mas não descobriu a gente, não senhora. Alcançou a vaca e seu bezerro e, como que por artes do demo, levantou os animais e puxou-os, pelo ar, para dentro da grande roda. A luz violeta se apagou, mas as outras continuavam piscando.
—Vamos voltar pro sítio do compadre Limírio! — Cochichei, angustiada, ao meu marido.
—Pera aí, mulher! Essa coisa não vai ficar a noite inteira aqui. Vamos ficar quietos, aqui nessa cava eles não acham a gente. — Sussurrando, me abraçou. Mas continuei apavorada. — Eles têm de me devolver a Mimosa com seu bezerrinho.
Marcionílio tinha razão. Não demorou mais que alguns minutos e de novo o facho de luz violácea apareceu, saindo do centro da roda. Descendo no meio do facho, como que sustentadas por uma mão invisível, a vaca e sua cria apareceram e foram depositados no chão, sobre o capim. Imediatamente, a luz central se apagou e a grande roda começou a rodopiar — agora, sim, estava girando em alta velocidade — e subitamente, elevou-se no céu estrelado. Num momento já estava muito alto, e no momento seguinte, desapareceu no céu.
Meu marido ainda me segurava pelos ombros. Pouco a pouco, a coragem voltou. Saímos da estrada e entramos no pasto, caminhando na direção da vaca e o do bezerro. Os dois animais estavam deitados no chão. À medida que chegava mais perto, a gente sentia um cheiro forte de carne assada e de pêlo queimado.
—Os bichos devem estar mortos. — Meu marido foi se ajoelhando ao lado da vaca, que, ao ser tocada, assustou-se, levantou-se e se pôs a correr. Mas o bezerrinho, coitadinho, ficou imóvel, prostrado.
—Os desgraçados mataram o bezerrinho. — Mas, em seguida, sentindo ainda que o bichinho respirava bem fraquinho, falou:
— Não tá morto, não, mas tá muito machucado. Todo queimadinho, venha ver, Eduína.
Ele pegou o bezerrinho no colo e assim chegamos, beirando a casa do Manoel Retireiro.
—Mané, acorda, seu! Vem me ajudar.
Uma lamparina apareceu quando a porta foi entreaberta.
—Que foi, patrão?
Os dois foram pro curral, levando o bezerrinho. Fui pra casa, onde esperei Marcionílio chegar. Fiz um chá de erva cidreira pra acalmar a gente. Quando Marcionílio chegou, estava muito zangado. Ele era cuidadoso com as criações e sentia demais quando perdia uma, por doença ou por desastre.
—Num teve jeito, não. O bezerrinho morreu. Estava todo chamuscado, parecia mais um churrasco.
Tomou um gole de chá. Estava com raiva. Voltou à porta da sala. Com um pontapé, abriu a porta que dava para o alpendre e da sacada gritou, agitando os braços ameaçadores para o céu:
—Seus filhos da puta! Porque não vão fazer churrasco da mãe?
ANTONIO ROQUE GOBBO— 23.MAIO.2003
C0nt0 # 223 da Série Milistórias

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