segunda-feira, 5 de abril de 2010

A BASTARDA E O PADRE

Dina, a moça que cuidava da casa paroquial, era uma bela morena: alta, com o corpo bem feito, andava com aprumo e seu rebolado despertava atenção dos homens da cidade pequena. Os cabelos bem crespos e negros contrastavam com os olhos verdes e denunciavam uma mistura de sangue de que pouca gente desconfiava.
A cidade era pequena, dessas cidadezinhas do interior brasileiro e a época, colonial. Tempo de garimpo, de escravidão, de muitas rixas, desavenças, tocaias, assassinatos. Uma época violenta, sem dúvida, que contaminava a todos, inclusive os mais puros. Como era o caso do Padre Strass, quando chegou à Realdouro, então pouco mais que uma vila.
Homem piedoso mas ao mesmo tempo dinâmico, não se conformou com a situação moral de seu rebanho e muito menos com a miséria e falta de recursos dos mais necessitados. Com pouco tempo como pároco, organizou uma escola para os pobres (os ricos mandavam os filhos para estudar em cidades maiores), uma pequena banda de música, um asilo para velhos e uma “vila” para famílias pobres, sem qualquer recurso.
Essas atividades sociais, muito avançadas para a época e o lugar, geraram muito ciúme por parte dos importantes da cidade. A escola, que admitia até alguns negrinhos, meninos sem origem certa, o que era uma abominação, conforme opinião de Dona Candinha, mulher do mais rico fazendeiro local. A banda de música era um bando de ignorantes que nada entendiam de partitura, notas musicais, teoria, etc. etc, na opinião do delegado de polícia.
No púlpito, Padre Strass não perdoava os ricos, culpando-os pelas mazelas do local. Não media as palavras e era destemido no denunciar as situações escabrosas, que não eram poucas.
Sua prédica aliada à intensa atividade com os pobres valeu-lhe a inimizade de alguns homens importantes da cidade. Ameaças veladas chegam-lhe aos ouvidos, pelo confessionário ou por outras maneiras que escondiam perfeitamente os ameaçadores.
Mas a carne é fraca. Padre Strass, no vigor dos quarenta anos, não resistiu aos apelos da carne. E eis que Belarminda, a negra alforriada que tomava conta da casa paroquial, apareceu grávida. Ninguém cogitou de saber na certa quem era o pai da criança, tão comum era naqueles tempos a negras engravidarem fora da senzala. Assim, Belarmina, cumprido o tempo de barriga-cheia, deu à luz a uma criança, menina mestiça que recebeu o nome de Esmeraldina, devido aos olhinhos muito azuis que enfeitam seu rosto moreno, quase negro.
Nem por um minuto Padre Strass deixou Belarmina sem assistência. E depois, com a criança, continuou como empregada da casa paroquial.
Apenas algumas línguas viperinas de madames que freqüentavam a “Associação do Amor do Sagrado Coração” é que, aos cochichos, faziam comentários sobre quem seria o pai da criança. E concluíram, sem nenhuma investigação ou provas, que Padre Strass era o pai de Esmeraldina. Coisas de gente que não tem o que fazer.
Cresceu Esmeraldina, em graça, beleza e vigor. Ajudava a mãe nos cuidados da casa paroquial e do próprio pároco. Dina caiu-lhe bem como apelido e assim era conhecida.

Passou o tempo. Padre Strass, aos sessenta anos, assumira uma atitude que estava muito mais para um general prussiano (aliás, conforme sua origem) do que para um pároco de miserável cidade nos confins do mundo.
Intolerante, incapaz de burilar suas palavras — com forte sotaque, que era outra causa de birra com os paroquianos — dizia poucas e boas para todos, repreendendo com dureza os que agiam em desacordo com os mandamentos de Deus ou da Igreja. O seu envolvimento com a política e sua posição contra a maçonaria foram outras tantas fontes de inimizades.
Tais inimizades e antipatias criadas ao longo de sua missão religiosa em Realdouro cresceram e algumas se tornaram publicas. Mas o padre não levava em conta os conselhos de uns poucos amigos (o sacristão, o maestro da banda de música, e um dos professores da escola paroquial), no sentido de amenizar suas palavras e ameaças.
Mal sabia o Padre que o perigo maior estava sempre ao seu lado...

Dina transformara-se em bela moça. Sempre ao lado da mãe, ajudando-a e substituindo-a durante algumas crises de saúde. Até que a morte levou dona Belarmina. Dina então passou, sem qualquer questionamento ou conversa com Padre Strass, a exercer plenamente as funções da mãe. Com a mesma fidelidade e carinho, cuidava da casa, do alimento e das roupas do padre.
Aconteceu então que um rapaz se engraçou por Dina. Miguel Ferreira, filho do Coronel Emerenciano Ferreira, o maior fazendeiro da região, e, não por acaso, o inimigo numero um de Padre.
— Meu filho, aquela moça não lhe convém. — O pai advertiu o filho. — Não tem pai, dizem que é filha do padre. Vai lhe causar encrenca.
Miguel não deu atenção ao pai e se encontrava às escondidas com Dina.
— Fuja comigo, Dina. Vamos nos casar. — Prometeu à moça.
— Não posso sair sem a permissão do Padre Strass. — A fidelidade dela era atingia à submissão.
E quando ela falou com o padre, este irrompeu numa reprimenda que acabou em ameaças:
— Não permito que case com Miguel, ele não presta, é filho do Coronel Emerenciano, um bandido. E se você fugir (parece que ele ouvira a proposta de Miguel), estará amaldiçoada pelo resto da vida.
A moça recolheu-se no seu pranto e na sua situação. Sentiu-se desesperada, pois na verdade já havia se entregado ao namorado de corpo e alma.
Miguel, que não era, realmente, flor que se cheirasse, sugeriu (e deu-lhe num saquinho de pano) algo que a moça, no seu desespero, pensou que seria a única solução.
Não passou nem um mês após a proibição quando o padre Strass faleceu. Uma morte estranha e inesperada, dado o vigor e a energia do falecido.
Após o enterro, cuidadosamente, Dina enterrou no quintal, o saquinho que ainda continha o restante de finíssima farinha de vidro moído, que ela durante algumas semanas colocara na sopa de fubá que servira todas as noites ao padre Strass.

ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 27 de fevereiro de 2009
Conto # 536 da Série Milistórias –
Todos os contos da Série Milistórias São arquivados na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

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